Olá amigos, finalmente
chegou o grande dia, não sei o que poderia me deixar mais tenso: o pavor de
sentir a contusão, a ansiedade de encarar aquele deserto, a vontade de vencer
aquele desafio (vencer no sentido de terminar a prova) ou tudo aquilo junto
querendo “explodir” o meu coração com tantas incertezas. Como dissera
anteriormente, eu não apresentava sinais de preocupação, ainda mais pelo fato
de já correr há muitos anos e saber dos meus limites, das minhas condições e da
maneira como sempre enfrentei os obstáculos. Entretanto, tinha uma convicção:
erguer a bandeira branca seria o último recurso!
A largada estava marcada
para as 07h30min, acordei relativamente cedo, por volta das 06h00min, mas de
tanto que “enrolei”, acabei saindo do hotel às 07h25 (pasmem!), tive que sair
correndo para a concentração do evento, era tudo pertinho, não levei mais que
três minutos. A galera estava animada, todos brasileiros, encontrei a Raquel
(23Km) e a Monique (6Km), tiramos as tradicionais fotos antes da prova. Acabei
não fazendo o aquecimento e, pontualmente o locutor “Maquininha” iniciou a
largada para a maratona. A minha estratégia era simples: devagar e sempre.
Manter a concentração era outro ponto importante, já que teria que lidar com os
possíveis imprevistos com tranquilidade e objetividade.
O percurso saiu pelas
ruazinhas de San Pedro, até a rodovia de acesso à cidade, seguimos os cinco
quilômetros iniciais em asfalto, nesse instante, a temperatura estava relativamente
agradável, apesar da sensação de “abafado”. Boa parte dos corredores mantinha
um ritmo moderado, poucos arriscavam acelerar, visto que poderia ser um
desgaste desnecessário. No meu caso, era o ritmo ideal, mesmo se quisesse, não
teria a mínima condição de imprimir mais velocidade. Estava há dois meses sem
correr, apenas fazendo trabalho de fortalecimento na piscina e no Power Plate,
qualquer ato impensado precipitaria o meu abandono na prova. A cada quilômetro
vencido, um a menos para me preocupar, o calor começava a dar sinais de que
seria um grande obstáculo naquele dia.
Os oito primeiros
quilômetros foram relativamente tranquilos, sem modéstia, na minha cabeça desenhava-se
uma maratona controlada, sem excessos e se tudo seguisse daquele jeito, os
trinta e quatro quilômetros seguintes seriam feitos com muita responsabilidade.
Eu me enganei! Minha ingenuidade foi uma armadilha quase perfeita, por pouco
tudo não foi para o espaço! Chega de reclamar, tenho que dar espaço para falar
sobre o maravilhoso percurso, aquilo tudo parecia um sonho, por onde passava
fazia questão de parar e fotografar, eu sabia que essas interrupções poderiam
ser prejudiciais, mas a vontade de registrar tudo ali era mais forte. Acabei
encontrando no percurso o Marcelo Jacoto,
maratonista experiente, que está sempre viajando pelo mundo em busca de novos
desafios. Também encontrei a Camila
Junqueira, que conheci no Chile.
Antes de atingir o
quilômetro dez, avistei a placa do “25Km”, achei estranho, mas era apenas o
desvio para aqueles que correriam a distância menor, para mim, ainda teria
muita areia para enfrentar antes de chegar naquele ponto. O percurso seguiu
plano, já em terra batida, nada que pudesse ser um problema. Vários pontos
cobertos de sal, tudo muito seco, poucos sinais de vida e assim seguia a passos
lentos, mas consistentes. A partir de um determinado ponto, iniciamos um trecho
fechado por cavernas, cujo sol não alcançava e permitia aos atletas um raro
momento de conforto. Sem contar a beleza do lugar, um deserto que revelava ser
generoso em alguns momentos, eu estava contente por ter chegado até ali
intacto. Após, um trecho ascendente em dunas traiçoeiras, areia fofa e
profunda, era impossível correr, a cada passo, os pés afundavam a altura dos
tornozelos. Hora de caminhar, pacientemente, é claro.
Aquilo tinha cara de deserto
que até então eu só havia visto em filmes, ainda bem que havia todo o suporte
da organização e a minha hidratação particular, caso o contrário, coitado do
indivíduo que cair naquele território sem ter algum meio de sobrevivência. O
cansaço começava a aparecer, no entanto, a empolgação ainda era mais forte. Dali
por diante, o percurso tinha todo tipo de atrativo: subidas, descidas, trechos
planos, cânions, vales, sal e pequenos morros, todos eles “supervisionados”
pelo sol, grande “Deus” daquele lugar. Enfim, a placa do Km15, isso significava
que pouco mais de um terço da prova havia sido concluído. Calculava que ali
devia ser o Vale da Lua (peço perdão se estiver enganado), sei que fotografava
tudo por onde passava. Os postos de água e Gatorade foram eficientes, servidos
a cada cinco quilômetros, havia o suficiente para todos (não escutei reclamação
de ninguém a esse respeito).
Posso dizer que até o Km20 a
maratona tinha um percurso tranquilo, sem grandes emoções, não apresentava
grandes dificuldades, exceto os trechos de dunas, algo bem aceitável por
tratar-se de um deserto. Quando cito nível de dificuldade, me refiro a trechos
em que nossos limites são colocados a prova quase que a todo o momento, em que
a atenção tem que ser redobrada para não cair em buracos, não escorregar, não
levar tombos etc. No caso do deserto, até aquele instante, havia um cenário
definido: uma corrida num local atípico, onde brasileiros encaravam um clima
desértico, totalmente diferente das temperaturas brasileiras. Mesmo aquele que
vive em regiões quentes, poderia sentir a diferença, visto que a altitude é
outra (2.200 metros acima do nível do mar), entre outros fatores. Tudo que
aconteceu a partir daquele momento, foi um verdadeiro pesadelo para mim.
A dor no tornozelo, a mesma
que eu estava tratando, começou a dar pequenos sinais de incômodo, procurei não
pensar muito, ainda tinha pela frente metade da maratona. Para complicar ainda
mais, contornamos o Vale da Lua e retornamos pelo mesmo local da ida, ou seja,
aquela placa do Km 25 era o próximo objetivo. Inacreditável o que estava
acontecendo, não parecia em nada com o trecho que eu havia passado uma hora
antes, era como se a temperatura tivesse elevado uns 30 graus de uma hora para
outra, estava por demais quente, não conseguia enxergar nada no horizonte que
não fosse deserto e mais deserto. Já estava começando a ficar apavorado, a dor
aumentava, o meu ritmo caiu assustadoramente, praticamente fazia uma “marcha
atlética” (nem corria, nem caminhava), nunca havia desistido de uma prova e nem
passava pela minha cabeça que isso poderia acontecer justamente no Deserto do
Atacama!
Quando avistei a placa do
Km25 fiquei mais esperançoso, havia uma mesa com frutas, isotônico em gelm
entre outras quitutes. Parei, tomei um pouco de ar e segui em frente. O curioso
é que fui ultrapassado por poucos corredores, cheguei a conclusão que o deserto
estava sendo traiçoeiro com todos, alguns sentiam mais que os outros, no meu
caso especificamente, a dor no tornozelo era o grande vilão da história. Bom,
como diz a frase “tudo que está ruim pode piorar”, de fato, isso aconteceu sem
qualquer cerimônia, uma verdadeira montanha apareceu diante de mim, um
verdadeiro “paredão”, acho que nada ali poderia ter sido mais desesperador do
que observar aquilo e saber que tinha que chegar ao cume. Nesse instante,
encontrei a experiente maratonista Valeria
Fontes, que estava escalando o morro. Passado o penoso sofrimento de subir
aquela parede do deserto, adivinhem? Mais dunas pela frente, como não bastasse
o cansaço, ainda havia mais areia para percorrer (caminhar).
O deserto é enigmático, ele
pode apresentar momentos de desfruto e prazer, como também pode evocar as
piores sensações físicas que um ser humano pode ter. É preciso ter cuidado;
saber onde pisar, ser cauteloso e o mais importante: ter paciência. A minha
maratona beirava os vinte e oito ou vinte e nove quilômetros, o trote era leve,
eu procurava não ocupar os meus pensamentos com ansiedades ou pessimismo, não
havia mais técnica, o que me restava era a superação, a tentativa de conseguir
reunir forças (físicas e mentais) para chegar a San Pedro e cruzar a linha de
chegada. Quando as dunas chegaram ao fim, uma montanha, não como a “parede” de
momentos atrás, mas uma longa montanha, seria preciso muita força para chegar
ao topo, coisa que eu teria que encontrar lá no fundo de sabe-se lá de onde. Na
metade dela, um dos staffs estava
auxiliando os corredores que sentiam falta de oxigênio, portava uma máscara e
atendia aqueles que mais apresentavam sinais de desequilíbrio. Não necessitei
desse auxílio, como disse, o meu problema era a dor no tornozelo e para
“incomodar” ainda mais, uma dor que nunca sentira antes, na virilha direita,
passou a me fazer companhia.
Ao atingir o final daquela
“venerável” montanha, o que se via era “mais do mesmo”: um deserto infinito,
não havia nada, simplesmente nada que pudesse me animar naquele horizonte. Já
estava no Km31, passei a trotar a passos bem curtos, não queria ter o desprazer
de estender a passada e revelar a dor na virilha. Foi aí que percebi um
caminhão da organização à frente (eu achava que era miragem, típico do
“desespero” no deserto – risos), mas era de verdade, o meu foco era chegar lá,
bastava seguir em linha reta e em pouco tempo estaria lá. Outra ingenuidade sem
tamanho, não era exatamente uma linha reta, na verdade, eram pequenos morros,
em que era necessário subir e descer por areia fofa, até chegar ao caminhão
(acho que foram uns cinco obstáculos desse). Esse posto de hidratação estava
localizado após a rodovia, havia inclusive um policial na estrada fazendo a
segurança (já pensou se surgisse algum veículo em alta velocidade no momento em
que algum corredor estivesse atravessando?). Só para constar: estava no temido
“Vale da Morte”...
Ainda no posto, parei e
descansei um pouco, conversei com os staffs,
consumi laranja, mexerica, isotônico, gel e tudo mais que havia ali. Segui por
um trecho de terra batida, uma espécie de “estradinha”, onde alguns corredores
me ultrapassaram. Alternava entre caminhada e trote, eis que não aguentei e
sentei no posto de Gatorade seguinte, permaneci uns minutos deitado, tentando
recobrar alguma energia. Ao me levantar, a sensação era de ter sido pisoteado
por uns vinte lhamas, mas a teimosia e perseverança são atinentes a minha
personalidade, já que havia chegado tão longe, de um jeito ou de outro cruzaria
a linha de chegada. Podem perceber que eu estava obstinado, porém, era um risco
cada vez maior que eu me colocava, já que estava cada vez mais debilitado e
isso poderia trazer sequelas futuras. Será que estaria jogando todo o trabalho
de recuperação do tornozelo pela janela? Será que a lesão, agravada pelo meu
esforço poderia tornar-se crônico? O que poderia acontecer? Perguntas e mais
perguntas, não havia resposta para nenhuma delas, só queria mesmo era concluir
aquela maratona.
E assim, em quilômetro por
quilômetro, conseguia me aproximar do final, a duras penas, o corpo já não
tinha reflexos, os meus pensamentos eram lentos, a resposta da musculatura era
cada vez menor, não existia energia extra, essa já havia sido utilizada há
muito tempo. O que me restava eram algumas lembranças da minha família, alguns
flashes passavam pela minha cabeça, isso me mantinha “ativo”, de alguma forma.
A placa do Km39 apareceu, restavam pouco mais de três quilômetros, já havia
chegado muito longe, tinha um plano inicial de terminar a prova antes do
horário de corte (seis horas e quinze), e estava quase nesse limite. “Fechei os
olhos” e segui em frente, alguns corredores estavam no mesmo passo e segui
“acompanhado” com muito esforço. Procurava dissipar as dores, acho que a
dormência do meu corpo “anestesiaram” o tornozelo e a virilha. Não havia suor,
havia sal em todo meu rosto, não me lembro de ter me desgastado tanto em todos
os anos de corrida.
Avistei San Pedro de Atacama,
o final estava próximo, passei do estágio do cansaço, da exaustão, da dor, do
calor, acho que estava numa espécie de plano natural do “não sentir nada”, as
pernas estavam dormentes, não sentia o solo pesado, as vozes de incentivo eram
escutadas bem longe, eu estava literalmente correndo “dentro de mim”, tudo ao
meu redor passou a ser secundário, nunca tinha passado por situação semelhante.
A chegada foi incrível, faltava menos de quinhentos metros, lágrimas saltavam
dos meus olhos, mas eram imperceptíveis por causa dos óculos escuros, chorei,
mas com aquele sol endiabrado até as lágrimas secaram rapidamente. Cruzei a
linha de chegada com o tempo de 05h49minutos. Foi terrível, foi difícil, foi
impressionante, foi linda, foi desafiadora, foi temerosa, foi inacreditável,
foi tudo aquilo que se possa imaginar num lugar com aquele, mas o que me deixou
mais feliz: EU CONSEGUI!
Recebi uma boa massagem, me
hidratei, conversei com alguns corredores, a ficha ainda não havia caído, pois consegui
correr uma maratona aquém das minhas condições físicas, suportando por quase
seis horas muitas dores, enfrentando o cansaço extremo e minando quilômetro por
quilômetro na base da superação. O melhor de tudo foi ter fotografado quase
tudo, memória viva de todos os meus percalços. A medalha foi sensacional, um
verdadeiro “medalhão”, pesada, que representava tudo aquilo que passei, tudo
aquilo que enfrentei, senti o “gosto” do deserto para merecer aquele objeto no
peito, o valor sentimental e moral e indescritível. Estou tentando expor para
os amigos corredores um pouco do que foi correr naquele terreno mítico, porém,
é necessário estar lá para sentir toda a sensação que eu não serei capaz de
transmitir em palavras.
Aos organizadores do
Mountain Do os meus sinceros parabéns por ter me proporcionado a oportunidade
de enfrentar o maior desafio esportivo da minha vida até hoje. Sei que haverá
muitos obstáculos mais árduos pela frente, quero apenas deixar registrado que
me sinto uma pessoa muito mais forte, muito mais determinada, muito mais
motivada, muito mais iluminada e muito feliz após ter conseguido provar a mim
mesmo do que sou capaz. Serei eternamente grato à minha família por toda
estrutura moral que possuo, sem eles, eu não saberia nem atravessar uma rua,
todos são importantes e carrego comigo todas as palavras de incentivo. Posso
dizer, no futuro, aos amigos, quem sabe filhos, que já atravessei o Deserto do
Atacama correndo mais de 42 quilômetros.
A minha aventura no Chile ainda
não terminou, no dia seguinte fiz o meu último passeio pelo Vale da Morte. No
próximo e derradeiro capítulo contarei como foi “reencontrar” uma parte do
percurso da maratona.
Ei Dan, depois de ler tudinho, eu posso dizer q vc é "Espetacularrr" e esta Maratona "Surreal".
ResponderExcluirUm Super Parabéns! bjssss
Obrigado Ignez! Coloque essa maratona na sua agenda, uma aventura inesquecível!
ExcluirUm abraço e bons treinos!
Uauuuu! Mesmo com tanto desafio q enfrentou, confesso q ri da forma de vc escreveu em alguns trechos. E com ctza serviu de conforto para eu fazer a minha, aqui em ctba, q em comoaracao com atacama eh provinha mole mole. Vou usar seu post como preparo psicol da minha! vc eh um verdadeiro campeao daniel. Super congrats guerreiro!!
ResponderExcluirMuito legal. A sua cobertura fotográfica ficou muito boa e seu tempo de prova também. Não consegui fazer tantas fotos assim do percurso.
ResponderExcluirParabéns pela prova Daniel.
Bons treinos.
Abraços
Marcelo
wwww.corramais.blogspot.com.br
@marceloada
Então.... essa foi ou ainda é sua maior, melhor e difícil experiência esportiva que você viveu! Mas tenha certeza que o melhor ainda está por vir, porque a vida não é só a que se vive ou viveu e sim o que ainda você viverá, e com essa obstinação que você já se acostumou a ter a tenacidade com que você busca superar as dificuldades que vão se apresentado, vou ter o prazer de ouvir e ler aventuras maravilhosas ainda. Daniel, ufa, que lindo, ameidorei cada palavra, senti a sua dor, mas também já comemorei sua superação.... que medalha linda!!!!! Você é um verdadeiro campeão, saboreie as próximas vitórias, porque essa você venceu!!!!
ResponderExcluirE como não falar dessas imagens maravilhosas, você foi muito feliz nessas imagens que registrou!!! Super Parabéns mesmo!!! Bjo
Muito bom Daniel!! Adorei as fotos!! deve ser incrível essa prova!!
ResponderExcluirBons treinos :)